Gustavo Binenbojn - O GLOBO
A natureza humana não é uma máquina construída a partir de um modelo e programada para realizar o trabalho nele prescrito; ao contrário, o homem é uma árvore que exige crescer e se desenvolver para todos os lados, de acordo com a tendência das forças internas que fazem dele um ser vivo autônomo.
Assim Stuart Mill, há um século e meio, principia a sua defesa da liberdade como valor fundamental à busca da felicidade, e de uma postura deferente do Estado às escolhas existenciais de cada um. Somente naquilo que as ações individuais possam causar prejuízos a terceiros restará legitimada a regulação estatal.
Os rumos recentes tomados pela regulação de vigilância sanitária no Brasil colocam em xeque essa que é uma das mais valiosas conquistas da civilização: a soberania do indivíduo sobre seu próprio corpo, sua mente e seu destino. Não se trata mais de um problema pontual, deste ou daquele setor da economia; estamos em meio a um esbulho da autonomia individual de amplas proporções e diversas direções, uma verdadeira asfixia regulatória.
No itinerário das crescentes restrições, ao menos três distintas ondas regulatórias são perceptíveis, revelando uma mudança de perspectiva quanto ao papel do Estado. A primeira onda era orientada, em sua essência, pela correção de assimetrias de informação. Situados em patamares diversos, tanto econômicos como informacionais, fornecedores e consumidores não poderiam ser tratados como iguais pela legislação. A proibição da propaganda enganosa, a exigência de informações básicas e as cláusulas de advertência acessórias à publicidade de produtos de periculosidade inerente foram medidas caracterizadoras desta primeira onda de regulação. Em linhas gerais, salvo excessos em casos específicos, tal modalidade de regulação cumpria seu papel a contento, ao assegurar que a liberdade de escolha fosse exercida pelos indivíduos em um ambiente de lisura, imparcialidade e pleno acesso a informações verdadeiras.
A segunda onda regulatória surgiu como decorrência da ruptura do Estado com a sua postura de neutralidade e equidistância em relação às escolhas individuais que não causem danos a terceiros. Este momento é caracterizado pela conversão das cláusulas de advertência em verdadeira contrapropaganda de produtos cujo consumo possa constituir risco à saúde. O Estado se arroga a condição de tutor da sociedade, confundindo o papel de informar com o de educar, doutrinar e interferir na vida privada de adultos maiores e capazes. Além de praticamente silenciar a oferta publicitária, o Estado passou a impor a divulgação de alertas repulsivos, cujo conteúdo informativo é duvidoso, voltados, na verdade, à dissuasão do consumidor.
Por fim, vive-se hoje uma terceira onda regulatória, na qual as restrições não visam apenas a informar ou a dissuadir os consumidores, como nas etapas anteriores. Vivemos a era da asfixia regulatória. A finalidade inconfessa, porém inegável, passou a ser o esvaziamento econômico de certas atividades produtivas, como tentativa de inviabilizar a oferta e reduzir o consumo de determinados produtos. Ao descrer da capacidade de discernimento e julgamento do indivíduo, o regulador pretende fazer as escolhas por ele. O cardápio de medidas restritivas vai da proscrição de certas substâncias ao banimento da exibição de produtos aos olhos do consumidor, passando até pela expropriação velada de marcas e nomes comerciais.
Há um rosário de objeções jurídicas que poderia ser desfiado contra tais medidas. De parte a flagrante usurpação de competências do Congresso Nacional - no que se refere a matérias que demandariam tratamento por lei, como a proscrição de determinado produto ou substância - há ainda questões constitucionais, como a proteção da propriedade intelectual e da liberdade de expressão comercial, que seriam virtualmente aviltadas.
De igual modo, são conhecidos os efeitos incentivadores do mercado ilegal produzidos por restrições de tal natureza, em prejuízo da economia formal, dos empregos e tributos que ela gera. Mas o que deve nos incomodar de maneira mais incisiva - incomodar a ponto de nos indignar - é a prepotência e a pretensão dessa turma que usa o discurso científico como instrumento de poder para dizer os riscos que podemos correr e a forma como devemos viver ou mesmo morrer.
GUSTAVO BINENBOJM é professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
terça-feira, 15 de março de 2011
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