Estou lendo o excelente Uma Gota de Sangue, de Demétrio Magnoli. Seguem alguns trechos do livro (apenas uma pitada), publicados a partir da página 88:
“O movimento pelos direitos civis empolgou multidões. Em contraste, as políticas de discriminação reversa nunca foram sustentadas por um movimento de massas. Mas a sua difusão, para além dos limitados programas federais, deu-se com a entrada em cena dos intelectuais e acadêmicos, que implantaram sistemas de admissão universitária orientados por critérios raciais, articularam iniciativas de “equilíbrio racial” nas escolas públicas e, sobretudo, formularam uma explicação multiculturalista da nação americana. Nada disso teria sido possível sem a intervenção da Fundação Ford (FF), o ator mais destacado na marcha triunfante das políticas de raça.”
“McGeorge Bundy tinha apenas 30 anos quando participou, com Bissel, de um grupo de formuladores de política externa que procurava articular o Plano Marshall à ajuda da CIA a grupos anticomunistas na França e na Itália. Ele chegou ao governo junto com a equipe de acadêmicos montada por John Kennedy e serviu como conselheiro de segurança nacional nos governos Kennedy e Johnson, até 1966, quando se tornou presidente da FF. Nos treze anos de presidência de Bundy, a Fundação descobriu as minorias, desempenhando um papel crucial na difusão das políticas de raça nos EUA e na arena internacional.”
“No fim da década de 1960, a FF estava diante de um cenário de crise política que se agravou ao longo do primeiro mandato de Nixon, quando as coalizões sociais articuladas no movimento pelos direitos civis voltaram-se para a luta contra a guerra do Vietnã. O núcleo dirigente da Fundação interpretou a radicalização dos protestos como um sintoma de funcionamento defeituoso do pluralismo político e formulou o conceito de multiculturalismo como uma ferramenta para restabelecer a normalidade nas engrenagens da democracia. De acordo com a lógica do multiculturalismo, as amplas coalizões sociais deveriam dar lugar a organizações e movimentos específicos, delineados em função dos interesses de cada minoria. A Fundação ajudaria a esculpir esses movimentos, oferecendo-lhes plataformas políticas e fundos capazes de sustentar grupos de pressão.”
“O discurso de vitimização e os recursos financeiros da FF uniram-se para gerar o que o jornalista George Will caracterizou, apropriadamente, como “a proliferação de grupos acalentando mágoas e reivindicando direitos”. Como registrou Joan Roelofs, um dos resultados do processo foi a cooptação em massa de lideranças independentes: “ativistas de movimentos sociais são desse modo transformados em pesquisadores, administradores e litigantes; e os movimentos são fragmentados em política identitárias”.”
“A abordagem básica da Fundação consistiu em incentivar a adoção de sistemas de admissão orientados por preferências para “grupos minoritários”. O instrumento pragmático utilizado foi oferecer vultosas doações, condicionando-as à implantação de cotas para minorias. Contudo, as ambições da FF ultrapassavam em muito a mera mudança dos sistemas de admissão. A finalidade era reformar de alto a baixo as perspectivas acadêmicas, as atitudes políticas, os currículos e as práticas nas universidades. Tratava-se, no fim das contas, de incutir o princípio do multiculturalismo no código genético do fazer acadêmico. Mais uma vez, a ferramenta de persuasão seria a oferta condicional de generosas doações.”
“Sob o influxo dos milionários financiamentos da FF, as universidades imitaram os padrões de segregação urbana e criaram seus próprios guetos, na forma de novos campos de estudo – Black Studies, depois African-American Studies, Mexican-American Studies, Native-American Studies, os estudos de race relations, os “estudos femininos” e incontáveis estudos étnicos específicos. Nos cinco anos iniciais, implantaram-se mais de quinhentos programas de Black Studies nos EUA. Desse modo, os pressupostos multiculturalistas adquiriram vida e realidade, como componentes do saber acadêmico consagrado. Mas, não satisfeita em produzir objetos de estudo, a “transformação curricular” injetou a raça, a etnia e o gênero em todos os departamentos e disciplinas, investigando, por exemplo, o “olhar afro-americano” das paisagens urbanas, os temas feministas na arte contemporânea e a misoginia inscrita na Nona Sinfonia de Beethoven.”
“Henry Ford II deixou a presidência da FF em 1950, mas permaneceu envolvido com sua direção durante mais de um quarto de século, como CEO e depois como curador. Contudo, ele experimentou uma desilusão crescente com os rumos da entidade filantrópica e, em 1977, renunciou à sua posição no conselho. “A Fundação é uma criatura do capitalismo”, observou, mas tornou-se difícil identificar algum traço de capitalismo “em qualquer coisa que ela faz. É ainda mais difícil encontrar um compreensão disso em muitas das instituições, particularmente as universidades, que são beneficiárias do programa de subvenções da Fundação”.”
“Em 2001, na maior subvenção singular da sua história, usou 280 milhões de dólares para criar um programa de bolsas de pós-graduação destinadas a “lideranças emergentes de comunidades marginalizadas foras dos EUA”. Trata-se, evidentemente, de uma ferramenta de cooptação de lideranças comunitárias em larga escala. Com cerca de 4,3 mil bolsistas espalhados pelo mundo, o programa recebeu, em 2006, 75 milhões adicionais e foi estendido até 2014.”
“A difusão internacional do multiculturalismo foi interpretada pelos sociólogos franceses Bourdieu e Wacquant como “uma verdadeira globalização das problemáticas americanas”. A ação da FF no Brasil atesta a agudeza desse diagnóstico. As subvenções da Fundação replicaram nas universidades brasileiras os modelos de estudos étnicos e de relações raciais aplicados nos EUA e consolidaram uma rede de organizações racialistas que começaram a reproduzir os discursos e demandas das similares afro-americanas. Por essa via, a polaridade branco/preto, que se coagulou nos EUA com a regra da gota de sangue única, foi exportada para os ativistas no Brasil, um país atravessado por desigualdades sociais muito diferentes e cuja tradição identitária articulou-se em torno da idéia de mestiçagem.”
“O “giro popular” da Fundação acompanhou a sua “decisão de privilegiar uma definição mais instrumental das Ciências Sociais” e beneficiou, em especial, as “organizações de ativistas afro-brasileiros” engajadas nas políticas de raça e na demanda de iniciativas de discriminação reversa. Num movimento complementar, as doações destinadas a universidades, embora continuassem a fornecer recursos para os mais variados programas, passaram a privilegiar as instituições que figuraram como modelos para a difusão dos sistemas de admissão por cotas raciais.”
sábado, 19 de dezembro de 2009
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Demetrio nao fala que ele e Yvonne Maggie, por exemplo, foram financiados pela Fundacao Ford em seus "estudos" sobre Negros/as no Brasil.
ResponderExcluirSim. E?
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